No colo de seu enorme tio, vestida com uma camiseta listrada, um conjunto de shortinho e casaquinho de botões azul marinho e uma sandália de couro que envolvia os pés gordinhos, a garotinha olhava fixamente as pessoas que saíam do avião, procurando papai e mamãe que voltavam de uma grande aventura. Foi uma chegada repleta de colos e abraços. Sentada em cima das enormes malas enquanto seu pai empurrava o carrinho em direção ao estacionamento, viu ao seu lado uma pedrinha brilhante, da cor de seu casaquinho. Guardou a pedrinha.
Ao chegar em casa, abriu o potinho que estava no armário com duas outras pedrinhas: uma que achou em seu berço no dia em que acordou sozinha e chorou alto até que alguém viesse resgatá-la; na cabeça da bebê demorou muito. A demora foi porque estavam todos hipnotizados assistindo pela primeira vez uma Copa do Mundo em TV colorida. A outra, amarela como o sol, ela não se lembrava onde encontrara, mas gostava muito de olhar para ela.
O potinho onde guardava suas pedrinhas era um cilindro de fundo transparente. Na borda parecia haver encaixe para algum outro tipo de peça. A origem dele era um mistério: apareceu embaixo de seu travesseirinho cor de rosa e ninguém soube explicar de onde veio.
Ao longo da vida, inúmeras pedras, de todas as formas, cores e materiais foram surgindo e sendo guardados no potinho. Até que uma manhã, a agora senhora abriu os olhos ainda cansada, como se não dormisse há anos, olhando à sua volta meio sem saber aonde estava. À medida em que a alma foi fazendo seu download, começou a reconhecer seu quarto e sentir as dores da alma. O corpo também andava meio “crocante”, mas era a alma que realmente lhe doía.
Não era bem uma dor, mas um sentimento não identificado. Seria fadiga? Talvez depressão, exaustão, um “burnout” ou coisa parecida. Não… o que ela sentia era desconexão. A vida lhe parecia uma sucessão de loucuras desconexas, uma montanha-russa emocional onde o carrinho parecia pular de um trilho para outro sem a menor cerimônia, às vezes correndo de frente, às vezes de costas, de cabeça para cima ou para baixo numa velocidade que a deixava sem saber como e para onde estava indo e sem tempo de se conectar com nada. Durante muito tempo não sentiu nada, por falta de tempo, mas agora que tinha tempo, sentia a dor da desconexão.
Pensou em levantar-se, mas resolveu cochilar mais um pouquinho, então pousou a cabeça no travesseiro outra vez. Sentiu que havia algo embaixo dele, e ao levantá-lo encontrou um cilindro muito parecido com o potinho onde guardava suas pedrinhas desde a infância. Engraçado, o potinho também havia surgido misteriosamente embaixo de seu travesseiro, como se fosse obra de uma Fada do Dente, salvo o fato de que em nenhuma das duas ocasiões havia perdido qualquer dente.
Tomou o objeto em suas mãos, curiosa. Era bem mais longo que o potinho, um pouco mais fino e uma das pontas parecia ser o encaixe de alguma outra peça. A outra ponta era vedada, com um furo no meio. Por dentro um triângulo feito de espelhos. Parecia a vida, não estava fazendo nenhum sentido.
A curiosidade venceu, e a mulher se levantou; calçou as pantufas macias e foi até o armário onde ficava o potinho. Como desconfiara, ele era o encaixe da ponta do outro cilindro. Girou as duas peças até ouvir um clique, e pensou o que deveria fazer a seguir. Uma voz soprou: “levante o cilindro, aponte-o para a luz e coloque o olho no buraquinho”.
Com essa informação, sentiu um “clique” em sua cabeça semelhante ao do cilindro. Viu-se transportada ao sofá da sala de sua casa de infância, brincando com um caleidoscópio. Pequenas, ela e a irmã se revezavam olhando pelo buraquinho e se deliciando com as formas e cores. O caleidoscópio era de sua mãe e ficava em cima do piano, na sala de estar. Não era muito grande, e por fora era envolto num papel com estampa de mapa mundi.
Parada em frente ao armário, deixou-se perder naquela lembrança por alguns instantes. As pedrinhas coloridas iam se combinando e rearranjando à medida em que as pequenas giravam a ponta, e para além das cores, ela via sentimentos. Alegria, tristeza, medo, insegurança, esperança, coragem, vitória, humildade, vergonha, honra. É claro que a garotinha sentada no sofá não entendeu racionalmente nada disso, mas os sentimentos iam fluindo do brinquedo direto para o coração dela. E agora tudo começava a fazer sentido.
De volta ao quarto, olhou emocionada para o caleidoscópio em suas mãos. Com o coração batendo apressado, levou-o aos olhos. A luz invadiu o fundo do potinho e os espelhos revelaram um mosaico riquíssimo, que tirou o fôlego dela por alguns segundos. Puxou a poltrona e sentou-se, porque as emoções eram intensas. Começou a girar a ponta vagarosamente, e as pedrinhas iam se arrumando e rearrumando, numa dança viva que formava imagens maravilhosas. A mesma onda que a invadiu lá naquele sofá, tanto tempo antes, estava ali de novo, mas agora, ela conhecia cada pedrinha e seu significado. Já não fazia diferença quais surgiram em bons e quais em maus momentos, no caleidoscópio elas simplesmente se juntavam e criavam beleza, uma beleza dinâmica e cheia de vida e movimento. Não era possível distingui-las com exatidão, e nem era necessário. Percebeu, então, como o caleidoscópio de sua mãe a moldara, como aprendera segredos sem palavras, apenas maravilhando-se com os arranjos dos fragmentos da vida.
Toda a desconexão que sentia acabou num piscar de olhos. A vida agora fazia todo sentido, tudo se conectava com tudo de uma maneira deslumbrante. E deslumbrada permaneceu ali, girando lentamente seu caleidoscópio e bebendo da vida que recebera de sua mãe enquanto a sua própria desfilava diante de seus olhos, sem a menor vergonha de ser linda.
Sem pressa, abastecida de vida, deixou o caleidoscópio por um instante. Escovou os dentes, o cabelo, fez uma massagem no rosto e sentiu vontade de vestir algo leve e colorido. Tirou da gaveta uma presilha de flor e prendeu o cabelo de lado, como fazia quando era uma garota descobrindo o mundo. Voltou ao caleidoscópio, pegou-o com cuidado e murmurou baixinho: “está na hora de você ir para a sala. Tem duas garotinhas precisando te conhecer.”